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Quem é a Pombagira Maria do Trapo ??? A Senhora da Rua !


 A brisa quente da noite varria o terreiro iluminado por velas e pontos riscados no chão de terra batida. O batuque dos atabaques embalava as saias rodadas das Pomba Giras que giravam em seus vestidos de cetim e veludo, adornadas com joias e perfumes finos. Era uma festa de Exu Tranca-Ruas das Almas, e o Ilê resplandecia em devoção.

Foi quando ela chegou. Cambaleante, risonha, de fala ligeira e olhar perdido no tempo. Maria do Trapo.
Seus pés calejados dançavam sobre a terra sem sapatos. O vestido, um emaranhado de retalhos coloridos e desbotados, denunciava sua origem humilde. Não trazia ouro, não se perfumava com essências caras. Trazia apenas a rua consigo. O cheiro do vento, da poeira, da cachaça derramada nas esquinas, dos becos escuros onde um dia viveu e morreu.
Quando veio pela primeira vez à cabeça de Mufumbi Kitambu, o velho babalorixá, trouxe consigo histórias de um tempo distante. Contou que, em vida, fora uma mulher simples, uma nordestina de pele negra marcada pelo sol, que caminhara quase noventa anos entre os homens. Mas sua mente era um labirinto sem saída. A sanidade lhe fugia como areia entre os dedos, e a cidade lhe chamava de louca. Esquizofrênica, bipolar, sem rumo. Mas, para ela, era apenas livre.
Seu nome em vida era Maria Firmina dos Santos Reis.
Maria do Trapo não pertencia a ninguém. Sua morada era a rua, e seus filhos, todos aqueles que nela dormiam. Cuidava dos bêbados, dos enjeitados, das prostitutas, dos órfãos. Era mãe dos esquecidos, senhora dos invisíveis. E mesmo na miséria, nunca deixou de sorrir, de falar pelos cotovelos, de abraçar os que precisavam. Uma mulher de alma errante, que dividia sua cachaça e sua fé.
Naquela noite de festa, ela viu as outras Pomba Giras reluzentes em sua beleza, com vestidos luxuosos e adornos brilhantes. Olhou para si mesma, tão despojada, e sorriu. Não precisava de ouro. Não precisava de seda. Ela faria sua própria maquiagem, à sua maneira.
Enquanto todos dançavam e saudavam Exu, Maria do Trapo sumiu. O tempo passou e o burburinho cresceu. "Onde está Maria?", perguntavam. O que havia acontecido com aquela senhora desbocada e andarilha?
De repente, a roda se abriu. E lá estava ela.
O rosto inteiro pintado de preto, os olhos brilhando de alegria. No canto do terreiro, um velho fogão a lenha lhe servira de espelho e paleta. Encontrou o carvão esquecido, pegou-o entre os dedos e desenhou sua identidade. Não queria ouro, mas sim a fuligem da vida, a marca do chão, da rua, da poeira onde um dia foi esquecida.
Riram. Tentaram explicar-lhe que as Pomba Giras vestiam-se assim em homenagem a Exu, que a festa pedia brilho, luxo e riqueza. Mas ela apenas gargalhou alto, balançando os braços como se jogasse as palavras para o vento.
— Minha riqueza é a rua! Minha joia é o carvão! Se é pra me enfeitar, que seja com aquilo que me veste desde sempre!
E girou. Girou como só Maria do Trapo sabia girar. Girou como quem dança com o destino, como quem abraça a loucura e faz dela poesia. E desde então, em toda festa onde é chamada, Maria do Trapo chega com seu riso rouco, sua fala apressada e seu rosto marcado pela negritude do carvão.
Anda lado a lado com Maria Preta, sua companheira de feitiços e segredos. Juntas, cruzam os caminhos da noite, desenham encantos nas encruzilhadas e estendem a mão aos que a vida esqueceu. Para ela, não há luxo que pague um abraço sincero, não há ouro que valha um sorriso verdadeiro.
Maria do Trapo é a mãe da rua. E enquanto houver um último perdido no mundo, ela estará ali, rindo, falando sem parar, e estendendo sua mão suja de carvão para acolher quem precisar.
Texto: Maria Padilha
Foto: Mufumbi Kitambu.
Fotos Léo D Ayra [ tel. 21 97941.4269]

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