Os africanos não concebiam a existência de uma maldade genuína e nem tampouco de uma bondade absoluta. Na sua visão, o dualismo é inerente a todo e qualquer ser, sagrado ou profano. Desse modo, não existia a mínima possibilidade de um africano conceber o Òrìṣà Èṣù da mesma forma que um cristão concebe Satanás. Enquanto este último é a expressão da maldade genuína que se opõe à infinita bondade de Javé — o Deus Supremo na teologia judaico-cristã —, Èṣù tanto atua beneficamente, favorecendo aquele que não negligencia com as divindades, quanto atua maleficamente, punindo os negligentes que põem em risco o equilíbrio da harmonia no universo.
Os colonizadores, através da catequese, adulteraram a concepção original acerca dos Òrìṣà, deturparam os conceitos relacionados aos cultos, corromperam o que havia de mais sublime na religião e na cultura de toda uma nação. Os Òrìṣà deixaram de ser divindades e foram relegados à posição de demônios nefastos. À força, outros deuses foram sendo impostos como salvadores da alma, ao mesmo tempo em que o africano era condenado, quando não à barbárie, à degradante condição de animal escravo, sem sequer lhe ser dado o direito de possuir alma.
Graças ao sincretismo com o Cristianismo, as degradações dos nossos conceitos mais puros se expandiram, nossos preceitos tornaram-se depreciativos e, com isto, arraigou-se um preconceito capaz de fazer com que, ainda hoje, muitos afrodescendentes neguem a sua ancestralidade e tantos outros conduzam de forma desprezível o legado dos nossos ancestrais. Contudo, o Àṣẹ — a pedra fundamental da religião dos Òrìṣà — resistiu através da convicção religiosa de grande parte desse povo e, persistindo até hoje em nós, seus descendentes, me permite, neste momento, mostrar com seriedade, dedicação e o devido respeito à autêntica tradição, um pouco da realidade desse nosso universo.
Tanto os Òrìṣà do povo de língua yorùbá quanto os Vòdún do povo de língua fɔ̀n ou jéjì, assim como os Nkisi do povo de língua bantu são concebidos como seres primordiais, expressões divinas das forças da natureza, um poder imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos através do fenômeno do transe. A todos são feitas oferendas e sacrifícios, são endereçados cânticos de louvor; todos possuem saudações ritualísticas específicas e seus mitos apresentam praticamente os mesmos motivos.
Todos os fundamentos da nossa religião, os nossos dogmas, manifestam-se através do símbolo, pois é a partir deste que os mitos justificam os ritos, transmitindo-nos a concepção dos nossos ancestrais acerca dos Òrìṣà. Um símbolo detém o poder de indicar, sugerir e estimular. Isso intensifica a afirmativa de que o mito, o rito, o culto, a religião, a arte e os costumes, assim como a consciência e os conceitos referentes à sua compreensão filosófica do mundo, encontram seus fundamentos no símbolo. Daí a máxima de que uma experiência simbólica jamais pode ser criada por nós, ela simplesmente ocorre.
— Mãe Stella de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì em "Òṣóṣi – o Caçador de Alegrias", 2006.
[A foto foi tirada por Mila Cordeiro para a AGECOM na festa dos 100 anos do Ilé Àṣẹ Òpó Àfọ̀njá, em 30 de julho de 2010.]
# Publicado por
Carlos Wolkartt
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