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Abrindo a Gira


 Ter caboclos na umbanda faz dela indígena ou afro-indígena? Segue o fio O culto aos caboclos é amplamente empreendido e, ao mesmo tempo, muito nebuloso. Sua origem não é exatamente incerta, mas mascarada.

Ao longo do século XX, na esteira do “modelo nagô” de Nina Rodrigues, a ciência (especialmente a antropologia) discriminou as manifestações afro-brasileiras em “puras” ou não de acordo com os povos de que descendiam.
As denominações de matriz Yorubá, como candomblé Ketu e em parte Jeje, foram elencadas como um modelo de africanidade ao passo que cultos Bantu foram tidos como inferiores. Os cultos centro-africanos (Bantu) passaram a ser analisados a partir da ideia de mestiçagem de Freyre o que culminou no mito da democracia racial e na narrativa romântica de sincretismo em religiões como a umbanda. Essa divisão é uma teoria que serve ao racismo e ao colonialismo, uma vez que tem sua principal disseminação na academia e que todos os 3 grandes grupos africanos que deram origem às religiões de terreiro – Bantu, Fon e Yorubá – compartilham, no Brasil, diversos elementos ritualísticos e cosmológicos entre si. O culto a caboclo aparece de maneira forte em religiões de matriz Bantu, como o candomblé Angola e a umbanda, e passa ser visto dentro do contexto que expliquei, como “mistura” entre “indígenas e africanos”, como um intercâmbio entre tradições. No caso da umbanda, essa narrativa é reforçada ao limite a partir do mito de criação de Zélio de Morais em 1908 que ilustra a religião como tendo nascida do adubo nacional sendo uma mescla entre “as 3 raças” sendo, ao mesmo tempo, indígena, africana e europeia – ou seja, “brasileira”. Dessa forma, os caboclos seriam o “traço indígena” na umbanda.
Porém, pesquisas recentes traçam a origem da umbanda para muito antes de Zélio, sendo uma religião de matriz Kongo-Angola. Essa territorialidade foi apagada ao longo do séc XX pelo embranquecimento da umbanda e da forçada aproximação com o espiritismo, dando origem a todo tipo de manual de umbanda de viés cristão e com uma lógica magista europeia. Tata Kajalacy, Tatetu dia Nkisi, diz que é tradição Kongo cultuar os ancestrais donos da terra dos lugares onde eles ocupam. São os nganga, especialistas espirituais bantu, que conhecem o lugar a partir desses ancestrais. No Brasil, os “donos da terra” são os povos indígenas e por isso os povos Bantu que aqui chegaram se preocuparam em cultuar seus espíritos. Mas isso não se trata de “mescla” ou “intercâmbio”, pelo menos não à maneira do mito da democracia racial. Existe uma distância muito grande entre práticas tradicionais indígenas e afrobrasileiras: o que se conhece por xamanismo e pajelança dispõe de outras relações cosmológicas e pressupostos bem diferentes dos encontrados nos terreiros de umbanda (e de candomblé). É bom que isso fique muito claro para nós. O mundo umbandista não é o mesmo do(s) indígena(s). Se apropriar, erroneamente, de termos como "xamanismo" sem se preocupar em saber do que realmente se trata é um apagamento violentíssimo que não é incomum entre espiritualistas Dessa forma não há exatamente uma absorção de elementos ameríndios em tradições Bantu, mas sim uma reinvenção por parte dos africanos. O arquétipo “caboclo”, como aparece nos terreiros, é uma reinvenção Kongo-Angola dos espíritos indígenas. Não é a soma de dois elementos para criar um terceiro, permanecem dois: indígenas e africanos. Robert Slenes nos alerta que não existe “nada mais fiel aos princípios das expansões Bantu dos últimos seis mil anos do que o espírito caboclo”. Ter então caboclos e caboclas na umbanda e esses espíritos serem (também, mas não só) indígenas não torna a umbanda indígena e nem afro-indígena. O culto aos caboclos é uma manifestação afrodiaspórica Kongo-Angola. E se atentar a esses detalhes não é sobre procurar pureza de nada porque não se trata disso sendo que, como já falei, há partilha de elementos entre os 3 grupos étnicos. Se trata de se desvencilhar de uma história romântica e colonial. Se trata também de trazer clareza para nós sobre nossas próprias práticas, para entendermos nossos limites e não ficarmos embalados nesse costume ocidental de dizer que são nossos elementos que não são. Costume esse consagrado, justamente, pelos manuais de umbanda que alimenta a história oficial (a de Zélio). A umbanda não é um 4º resultado da soma de 3 povos, não somos “a religião brasileira” e da democracia racial.
As relações a partir dessa teoria são as relações ditadas pela colonidade. Lembrar o culto Bantu aos ancestrais da terra e evidenciar que os caboclos na umbanda descendem disso é relembrar e inventar outras relações que não as coloniais.
O povo de umbanda não precisa se entender de tradição “afro-indígena” para poder ser aliado dos povos indígenas ou para poder cultuar os caboclos e caboclas porque essa relação pautada na democracia racial é uma invenção da Europa, e a nossa relação com os povos ameríndios descende na verdade de algo muito anterior a isso e forjado a partir de outra coisa. A nossa aliança se dá por outra via, estamos ligados por outras coisas. Coisas essas que, no caso da umbanda, os congressos racistas do séc. XX tentaram apagar.
Ao contrário do projeto de nação, continuidade da colonidade europeia, nós podemos nos aliar a partir da diferença e isso é o mais importante. A umbanda não precisa (e não deve!) mais se pautar como resultado de um projeto nacional que não nos serve. Saravá!
ZAP da Prof. Tania Jandira.
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