"Era um cemitério, tério, tério, tério...", cantavam as crianças todos os dias ao passar pelo portão do cemitério. Sr. João trabalhava ali e cuidava de quem entrava e quem saía. Havia um colégio do outro lado da rua e as crianças todos os dias acenavam para o cemitério e seu imenso muro branco, sem imaginar que muitos retribuíam o aceno. Por cima dos muros, um gato preto desfilava, bailava todos os dias, fazendo ronda. Era um lindo contraste, o gato negro e o muro branco. Maria, uma das alunas, parecia ter a predileção do gato. Ela lhe apelidara de Calunga, e parece que todos, inclusive o gato, gostavam da ideia. Sr. João sorria toda vez que ouvia o gato ser chamado. Calunga acompanhava alguns alunos até o ponto de ônibus, principalmente Maria, que nunca deixava só. Vou falar um pouco de Maria. Menina feliz, brincalhona, era adotiva em uma enorme família do interior. Aliás, na família da Maria, só não entra quem não quer. As reuniões de domingo incluíam vizinhos, amigos e quem quer que chegasse. Sempre se botava mais água no feijão. Acreditavam no bem, na felicidade com pouco. Gente simples, com coração enorme que rezava e acendia suas velas. A família, Maria, Calunga e Sr. João. Histórias que se cruzaram. Nada é por acaso. Nada.
As crianças que passavam sempre em frente ao cemitério achavam que Calunga era do Sr. João. Mas Calunga não tinha dono. Era de todos e era de ninguém. Era visto vez ou outra no bar do fim da rua. O dono do bar, Zé, o alimentava sempre. Zé era grande amigo de João e os dois sempre se encontravam pra conversar, beber uns tragos e ajudar alguns. Mas só ajudavam quem merecia. O bar era frequentado pelos moradores da redondeza, boêmios e malandros. E curiosamente Maria. Maria aparecia às sextas quando ganhava uns trocados do pai e comprava refrigerante. Ela não tinha medo de nada. Maria era da pá virada. Numa dessas sextas encontrou Sr. João e Zé conversando no bar e logo foi fazendo perguntas. Queria saber porque o portão do cemitério sempre estava aberto. Sr. João e Zé começaram a rir. Sr. João explicou gentilmente que já havia fechado algumas vezes pela madrugada. Mas que era simbólico, afinal o portão era de ferro, mas o cadeado era de madeira. E disse que um dia ela entenderia tudo. Tomou mais um gole e voltou ao trabalho e Maria seguiu seu caminho pra escola. Zé sorriu, ligou o som de seu bar e continuou a servir seu fiel público. Maria era curiosa demais. Não descansaria até saber toda a história de Sr. João. Como ele foi trabalhar ali, onde morava, se ele trabalhava sozinho. Vendo-a no portão do colégio olhando para o cemitério, um moço de ronda, montado em um cavalo, mandou-a entrar e estudar. Ela saiu retrucando, mas obedeceu.
Mais um dia de aula e dever cumprido. Maria foi olhando para o chão, pensativa, lembrando do moço que fazia ronda em seu cavalo branco, pensando também em Sr. João e o cemitério. A cabeça de Maria não descansava. 6 horas da tarde, Maria estava no ponto de ônibus quando ouviu um eco ao longe, de um sino. Parecia chamá-la. O sino da igrejinha fez belém blem blom. Aquilo invadiu o peito de Maria rasgando, que saiu correndo à procurar e querer saber de onde vinha o barulho. Sr. João a viu de longe e chamou-a.
- Entre aqui Maria. O que houve? Por quê tão aflita? Se acalme.
- O barulho do sino Sr. João! De onde vem?
- Acalme-se. O barulho vem da outra rua, da igrejinha de Santo Antônio.
- Nossa, nunca havia reparado. Achei que meu coração iria saltar pela boca. Que estranho. Já me sinto melhor Sr. João, mas preciso ir ou minha mãe ficará preocupada, ainda mais por estar no cemitério.
- Fique mais um pouco e não se preocupe. Cemitério é campo santo menina. E conheço Quitéria. Ela não irá se importar se você se atrasar um pouco e disser que estava comigo.
- Conhece minha mãe? Como? E por quê estou arrepiada? E quem é aquele senhor, cujo o corpo está coberto de palhas?
- Acalme-se menina Maria. Lhe explicarei tudo. É chegada a hora de você saber.
Enquanto sorria, Sr. João sentou, acendeu um charuto e mirou o fundo dos olhos da menina Maria. Aquele dia mudaria o destino dela.
Menina Maria estava ansiosa e confusa com tudo o que estava acontecendo. Calunga apareceu do nada, com vestígios de palha em seu pelo e ficou se enroscando nas pernas de Maria. Sr. João observava atentamente.
- Posso me sentar aqui com Calunga Sr. João?
- Pode sim menina. Sente-se. Zé também já deve estar chegando pra falar com você. Fico feliz em finalmente poder ter esta conversa e mais feliz por ver Calunga em seu colo. Ele não é disso.
- O que quer falar comigo Sr. João?
- Conheço sua mãe de longa estrada menina. Ela ajudou muita gente em uma casa que possuía. Muita gente se encaminhou através da bondade e do zelo de sua mãe. Foi mulher sim de alguns homens, mas amou um só.
- Ela nunca me fala dessas coisas Sr. João. Desvia das conversas sobre seu passado. Já defendi muito minha mãe. O povo lhe chama de leviana, mulher de cabaré. Eu não admito. Sofro com isso.
Enquanto suspirava forte menina Maria, seu Zé adentra o portão do cemitério e cumprimenta Sr. João e Maria. Pediu para conversarem caminhando pelo cemitério. Foram os quatro. Maria vidrada, observando tudo. Maria então para de repente com tremores pelo corpo e o homem coberto de palhas aparece. Sem falar uma palavra, o velho Omulu apenas abraça Maria por alguns minutos passando vez ou outra as mãos em seus ombros. Um vento repentino surge e leva embora aquela sensação ruim de Maria.
- Sr. João e seu Zé: posso me sentar mais um pouco? Fiquei tonta e um pouco enjoada.
Seu Zé então conversou com ela.
- Claro Maria. Sente-se. Estamos no cruzeiro das almas. Sente-se no banquinho do velho. Ele não está aqui mas certamente não se importará. Aqui você está protegida. Acenda uma vela para que tudo encaminhe bem. A luz é para todos menina. Mas muitos preferem a escuridão.
Sr. João concordou, sorriu e disse ainda:
- Durante muitos e muitos anos ajudamos o povo que quer ser ajudado menina. Não podemos interferir na vontade do povo. Protegemos, zelamos, guardamos os nossos. Porém se querem por livre vontade pular no abismo das sombras, não conseguimos fazer muita coisa. Cada canto desse campo santo é vigiado e cuidado. Nossa missão é ajudar.
- Nossa Sr. João! Eu nunca fiz ideia da importância do trabalho de vocês. Fale mais sobre minha mãe. Ela teve mesmo cabaré? E quem foi o homem que ela amou?
Sr. João deu uma gargalhada, olhou para seu Zé e disse à Maria:
- Volte amanhã menina Maria. Por hoje já foi informação demais. Só posso te dizer menina, que cada vez mais você se sentirá melhor. Afinal descobrirá que o cemitério é o seu lugar.
Menina Maria pegou o primeiro ônibus de volta pra casa. Chegou em casa eufórica, cheia de perguntas e carregada de emoção. Foi logo chamando sua mãe Quitéria e lhe contando todo o ocorrido e explicando seu atraso.
- Eu já estava preocupada Maria. Mas sabendo onde você estava, fico tranquila e aliviada. Estes assuntos estavam sendo adiados faz tempo. Tinha medo de lhe contar muitas coisas, mas acho que agora você tem mesmo que saber.
- Sr. João me disse que houve um tempo que você foi mulher de vários homens mas que amou um só. Quem é ele mãe? Preciso saber.
- É verdade Maria. Eu fui mulher de vários homens. Foi um tempo difícil, porém necessário, onde ajudei muita gente e fui muito ajudada também. Fui dona de um cabaré e várias mulheres puderam ter sustento trabalhando junto comigo. E nunca esqueci aquele sujeito, que todos os dias frequentava minha casa. Boêmio, namorador. Grande amigo de Sr. João.
- Por acaso você está falando de Zé, mãe?
- Você o conheceu também Maria?
Neste momento os olhos de Quitéria se encheram de lágrimas.
- Sim mãe. Conheci. É dono do bar na rua do cemitério e do meu colégio. Moço gentil e charmoso.
- Ele sempre foi charmoso Maria. Mas nunca teria dado certo. Zé queria ser de todas. Não pertencia a nenhuma mulher.
Neste exato momento, a campainha toca. Quitéria limpa os olhos e vai atender a porta.
- Boa noite. Posso lhes ajudar moças? Precisam de algo?
- Boa noite senhora. Desculpe incomodar a esta hora. Estamos montando um acampamento no terreno em frente e faremos uma festa neste sábado. Gostaríamos de convidar sua família.
- Iremos com muito prazer. Amamos o povo cigano e temos muito respeito e carinho por vocês. Precisamos levar algo?
- Pelo o contrário. Aceitem estas duas rosas como agradecimento pela ida de vocês.
Quitéria se despede e fecha a porta. Coloca as duas rosas em uma bela taça de cristal quando Maria vê e comenta:
- Rosa vermelha eu já tinha visto mãe. Mas rosa negra, como esta outra, eu nunca tinha visto. São lindas.
- O povo cigano tem costumes exóticos minha filha. Iremos na festa deles neste final de semana. Levaremos flores e perfume. É de bom gosto agradá-los. Conversaremos ao longo da semana sobre as outras coisas. É difícil pra mim contar tudo assim de uma vez. Vá dormir que já é tarde.
Menina Maria deu um beijo em sua mãe e foi deitar, cheia de coisas na cabeça. Ansiosa pelo dia seguinte, não pela aula, mas para novamente encontrar Sr. João e ouvir histórias. Mais do que isso, ela queria conversar com Zé.
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