Na manhã de um sábado de janeiro de 2017, dois jovens em uma moto bateram no portão do babalorixá Wagner Júnior, o Waguinho D'Ogun. O barracão funcionava havia 12 anos em Parada de Lucas, zona norte do Rio.
Eram traficantes da região e vinham com um recado claro.
"Um deles me informou que, a partir daquele dia, eu não poderia mais fazer nada de macumba. Se eu quisesse morar ali, tudo bem, mas nada de macumba. E caso eu fizesse, ele iria invadir", conta o religioso, um sargento do Exército de 50 anos.
A dupla, que chegou desarmada, faz parte de uma facção criminosa que combina atividades criminosas como tráfico de drogas e perseguição religiosa àqueles que julgam inimigos de sua crença. A facção proíbe os rituais de religiões de matriz africana em seus domínios, que compreendem Vigário Geral, Cidade Alta e Parada de Lucas. Dão à região o nome de "Complexo de Israel".
Mais recentemente, traficantes que se dizem evangélicos se aliaram a milicianos para levar a opressão religiosa a outras comunidades, conforme consta em inquérito da polícia obtido pelo jornal Extra, em janeiro de 2021.
Além de serem expulsos caso continuem suas cerimônias, mães e pais de santo são forçados a quebrar seus terreiros como tortura psicológica, e proibidos de andar vestidos de branco. Isso atinge outras expressões culturais ligadas à população negra. Capoeiristas, por exemplo, são impedidos de colocar suas roupas para secar nos varais.
Como a violência é uma certeza, candomblecistas e umbandistas que já sofreram ataques evitam falar. Ainda que tenham saído do complexo, têm parentes por lá e temem. Waguinho D'Ogun foi na direção oposta.
Enfrentei tudo isso de maneira serena, pois não tinha o que fazer. Não podia ir de encontro ao sistema da comunidade nem colocar a vida dos meus em risco. Acredito que, se Cristo abençoa aquele que mata, rouba, sequestra e destrói famílias, então não é Cristo
Waguinho D'Ogun, babalorixá
UMA NOVA CASA
Com 30 anos de iniciação no candomblé, Waguinho D'Ogun morava na Praça Seca, zona oeste do Rio, mas mantinha o barracão desde 2005 em Parada de Lucas. Nunca enfrentara uma situação dessas, e até hoje lida com as consequências daquela visita indesejada.
"Fiquei sem acreditar. Voltei para casa, conversei com minha esposa e comecei a observar os relatos. Até pensei que seria uma coisa passageira. Esperei alguns dias e retornei ao local para ver como estava. Constatei que não dava mais para continuar o culto ali."
Se, naquele dia, o clima já estava estranho, a situação piorou: traficantes circulavam pela rua como se quisessem checar se a mensagem havia sido compreendida.
Waguinho D'Ogun avisou amigos e membros que as atividades seriam encerradas. A partir daí, começou a procurar outro local para cultuar os orixás — um processo doloroso e cansativo, que quase o fez desistir de tudo.
Dali, ele levou todos os artefatos sagrados para uma loja onde funcionava um botequim e depois para uma quitinete minúscula em Sepetiba. Permaneceu ali por um ano, até que uma forte chuva inundou o local.
"Perdemos muita coisa, e os 'santos' ficaram boiando na água. Foi triste passar por aquilo. Decidi que não ia fazer mais nada, ia deixar os 'santos' na cachoeira, mas um casal de amigos pediu para levar meus objetos para a casa deles."
Ele manteve os objetos ali por mais um ano até que, em agosto de 2019, encontrou um lugar. A casa precisou de uma reforma: a ideia inicial era abri-la em junho de 2020, mas a pandemia impediu. Depois de muita espera, as atividades no Ilê Ogunjá Oxóssi serão inauguradas em 1º de maio.
QUEBRA TUDO, APAGA A VELA
Ao se mudar do Complexo de Israel, Waguinho D'Ogun escapou de um destino trágico. Outros religiosos não tiveram a mesma sorte. Em maio de 2018, um terreiro foi destruído na Cidade Alta. A mãe de santo de Mesquita, na Baixada Fluminense, foi expulsa junto a frequentadores. Testemunhas que não quiseram se identificar disseram que criminosos armados alegaram que "ela estava botando esse negócio de religião na comunidade, mas ela sabia que não podia fazer isso".
Os ataques se espalharam para além do território do complexo. Na Baixada Fluminense, um caso chegou a viralizar nas redes sociais. Imagens feitas pelos criminosos em 2017 mostram uma religiosa obrigada a quebrar imagens de santos após frequentadores serem expulsos no meio de uma celebração em Nova Iguaçu.
Durante a gravação, um dos rapazes dizia: "Olha aqui, meus amigos. A capeta-chefe aí. Quebra tudo, apaga a vela. O sangue de Jesus tem poder. Todo mal tem que ser desfeito, em nome de Jesus. A senhora é o demônio-chefe, que serve toda essa cachorrada".
Waguinho D'Ogun não tem ilusão de que a perseguição possa acabar.
"As raízes africanas sempre sofreram preconceito e isso irá continuar. Temos que nos unir por uma religião melhor, coesa, uma boa educação de axé, pois isso não depende de ninguém de fora e sim de nós mesmos. As outras coisas, sim, o poder público [precisa] fazer a sua parte. Até porque nosso direito de culto está garantido pela Constituição", afirma.
DA DOR AO ACOLHIMENTO
Na Penha, Kátia Marinho, 59, a Mãe Kátia de Lufan, passou a receber em seu barracão pessoas expulsas de localidades onde os cultos de umbanda e candomblé foram proibidos.
A reportagem do TAB tentou conversar com outros antigos moradores do Complexo de Israel, inclusive os abrigados no terreiro, mas eles preferiram o silêncio, com medo de represálias.
Com 35 anos de iniciada e também conhecida como Mametu (ialorixá) Kátia de Lufan, acolhe perseguidos após um drama pessoal. Em 2015, sua neta Kayllane Coelho, que recebeu o nome de Dandalogi pelo orixá, foi apedrejada ao sair de um culto de candomblé quando tinha apenas 11 anos. Na época, a menina estava sendo iniciada na religião.
Na hora senti desespero, angústia, medo. Não acreditei que aquilo estava acontecendo. É surreal uma pessoa agredir outra por causa do que ela acredita ou segue
Kayllane Coelho
Até aquele momento, ela só havia sido agredida verbalmente. Costumava ir à escola vestida de branco e ornamentada com contra egum (pulseiras e braceletes feitos de palha e búzios), sem ser incomodada. Um dia, enquanto andava de ônibus com a mãe, um homem se levantou e disse que ela "não podia olhar para o diabo, mas para Deus, porque ele era a salvação".
A pedrada a traumatizou. Evitava sair de branco ou usando adereços que entregassem sua fé. Se estava no terreiro e tinha de comprar algo, antes trocava de roupa. Precisou de acompanhamento psicológico e o apoio dos amigos até se sentir confortável com os símbolos de sua religião.
"No momento daquela agressão, pensei, 'Se ela estivesse com roupa normal, não teria sido atingida'. Ali, o branco representou o ódio. Mas, desde que mundo é mundo, o branco sempre representou a paz", conta Mãe Kátia. "Foi então que criei a campanha 'Eu visto branco. Meu branco é da paz. Sou do candomblé, e você?'. Com ela e nosso apoio, a Kayllane passou por isso tudo. Essas pessoas não são religiosas, mas fanáticas influenciadas por um discurso de ódio. Nós viemos de uma religião de negros e escravizados, então o preconceito sempre esteve presente."
Moradora de uma região neutra, Mãe Kátia pode professar sua fé e tem tranquilidade para promover ações sociais, como a entrega de alimentos a moradores.
Uma vez, um grupo de Cabuçu, de Nova Iguaçu, me pediu abrigo porque os traficantes deram 24 horas para o fechamento do terreiro. No dia seguinte, quando voltaram para pegar os objetos pessoais, o lugar tinha se tornado uma igreja
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