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Babalawô Ivanir dos Santos : Diante de 100 mil vítimas, a dor nos faz descobrir que somos iguais

Diferentemente de outras tragédias, em que as famílias se unem e se apoiam, o sofrimento na pandemia é marcado pela solidão. Por isso, num momento como esse, são ainda mais importantes as palavras de conforto.

Cem mil despedidas. Cem mil despedidas em quatro meses e meio. Em que país cabe tanta dor? A maioria dessas pessoas não se conhecia. Elas viviam em lugares diferentes, cada uma com seus hábitos, com sua crença. Ao contrário de outras tragédias, em que as famílias pelo menos se unem e se apoiam, o sofrimento na pandemia é marcado pela solidão. Por isso, num momento como esse, são ainda mais importantes as palavras de conforto. Diante de mais de 100 mil vítimas, aparentemente tão diferentes, a dor nos faz descobrir que somos todos iguais.
A dor de perder alguém é um mal mais antigo do que a própria Covid, e também não tem cura. Mas, ao longo do tempo, a humanidade foi descobrindo remédios que pelo menos aliviam essa dor. Eles são prescritos pela ciência, pela fé, pela filosofia.
“A palavra mais forte neste momento é compaixão. A ideia de compaixãonão é pena da outra pessoa. É saber que a dor de um é a dor de todos”, diz o professor Mario Sérgio Cortella. “Com a morte a gente não se conforma, mas a gente se conforta. Ou seja, a gente ganha forças juntos. Ganha energia, ganha ânimo. Sabe que é difícil, mas não é impossível, aprende com aquilo”.
Na tradição africana, o céu e a terra se conectam na delicadeza das folhas e na força das raízes do baobá. A árvore sagrada, que vive até seis mil anos, mostra que o ser humano é pequeno e passageiro.
“A cultura africana nos ensina que não tem início, meio e fim. Tudo é circular. Tudo tem continuidade. Você tem a sua ancestralidade, e você é a continuidade dela, e outros que virão após você também conseguirão ser a continuidade. E de entender que tudo o que acontece tem um propósito. Nada acontece por acaso. Então, obviamente, você tem que entender e compreender isso. E saber passar por momentos tão difíceis
como esse tendo a esperança de que tudo vai ter continuidade”, comenta Ivanir dos Santos, babalawô.
No Brasil, nunca tantos morreram de uma mesma causa em tão pouco tempo. Uma das maiores tragédias da história do país é também uma das maiores do mundo. Se a dor é a mesma no oriente e no ocidente, a sabedoria também pode ser compartilhada.
"A dor está presente em todos nós, mas não precisamos colocar uma outra flecha em cima dessa flechada que a vida já nos deu. É como se a gente tivesse recebido uma flechada e depois fica em cima pondo eu sofro, eu sou infeliz, como dói, como é ruim para mim. Não”, explica a Monja Coen, Comunidade Zen Budista Zendo Brasil. “Lembrando que aquele e aquela que morreu vive em nós. Um pouco de nós morre junto. Mas muito daquele ser vai continuar vivendo na nossa vida. Então, dê vida àqueles que já se foram na sua própria vida. Cuide. Faça alguma coisa que essa pessoa gostaria de ver ser feita”.
A ideia de que a melhor maneira de honrar quem se foi é a vida sagrada de quem fica também está presente na tradição cristã.
“Quando nós perdemos as pessoas que amamos, nós podemos honrar a sua memória vivendo. Nós não podemos permitir que a morte roube de nós a vontade de viver. Uma das formas de nós honrarmos as pessoas que nós amamos e que perdemos é vivendo com grandeza, com beleza. Vivendo, inclusive, em sua homenagem”, diz o pastor Ed René Kivitiz, da Igreja Batista Água Branca.
São mais de 100 mil mortes. E 210 milhões de homenagens. De alguma forma, todos nós perdemos alguém. Por isso, o conforto tem que brotar da solidariedade verdadeira de todos ao redor.
“Seria muito bom se houvesse uma espécie de consciência coletiva do que está acontecendo conosco e com o mundo”, comenta o psicanalista Contardo Calligaris. “Uma cidade de 100 mil habitantes de repente sumiu do mapa”.
A ideia da cidade desaparecida reflete uma tragédia que faz vítimas de todas as origens, idades, talentos e classes sociais.
“Acho que uma maneira de viver isso de maneira coletiva é justamente pensar nessa diversidade como sendo exatamente o que perdemos”, diz Calligaris.
E nenhuma homenagem é em vão, porque cada lágrima conta.
“A premissa islâmica é, se você perde um ser humano de maneira inocente, é como se você tivesse perdido toda a humanidade. Então, a ideia é que a gente tenha essa sensibilidade de se colocar no lugar do outro nesse momento tão difícil e de estar podendo de alguma forma confortar, de uma maneira solidária estar amparando essas pessoas”, explica Ali Zoghbi, representante da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil. “Nós, como seres humanos, precisamos ter essa sensibilidade de a cada vida perdida nós estarmos pesarosos”.
As palavras de muçulmanos e judeus se completam.
“A tradição judaica tem uma imagem que acho bastante relevante. A de que criador tem uma taça onde são recolhidas todas as lágrimas de sofrimento que são vividas. E um dia essa taça vai transbordar e a gente vai chegar a um mundo onde a construção de todas as pessoas e do seu sofrimento também vai nos levar a um mundo melhor, um mundo utópico, um mundo messiânico, essa ideia de um mundo mais harmônico”, conta o rabino Nilton Bonder
Em meio à tristeza do mundo inteiro, nós sofremos um pouco mais pela ausência do gesto que nos une como brasileiros: o abraço. Transformar a dor em saudade leva tempo. E é nesse momento que o gesto de ouvir o outro pode ser um carinho ainda mais forte do que o próprio abraço.
“É muito importante encontrar esse momento. Ainda que seja à distância, por tela, é importante escutar aqueles que estão enlutados. E abrir-se para a fala sobre aquele que se foi. Muitas vezes a gente teme isso porque o sofrimento fica mais agudo, fica mais intenso. Mas, de certa forma, é o momento para a gente sofrer. É o momento para a gente viver com toda a intensidade isso que aconteceu para gradualmente poder ir assimilando e integrando, tornando aquela pessoa parte da gente, parte da nossa história. Como ela já era, mas 
agora vai passar a ser de uma outra maneira”, diz o psicanalista e professor da USP Christian Dunker.
À sombra desse gigantesco abraço, a tradição católica lembra que a oração da Ave Maria nasceu numa pandemia. Durante a Peste Negra, na Idade Média .
“Nessa hora de dor, sofrimento, de tanta saudade, nós pedimos que Nossa Senhora, que sofreu a morte do seu filho nos braços, que ela peça, rogue, interceda por nós. Nesse momento, durante a vida, e na hora da nossa morte”, diz o padre Jorjão. “Por mais terrível que seja a dor da morte, nós acreditamos que o fim da nossa existência é uma vida sem fim”.
Como nunca passamos por uma tragédia dessa dimensão, não sabemos quanto tempo leva para esse sofrimento passar. Mas como todas as crenças e todas as linhas de pensamento nos disseram, juntos tudo passa mais rápido. A solidariedade produz o milagre de acelerar o tempo. É a única maneira de esperar por esse amanhã, na longa noite da pandemia.
Fonte ; Jornal Nacional / Rede Globo 

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