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A SOCIEDADE GẸ̀LẸ̀DẸ́

A Sociedade Gẹ̀lẹ̀dẹ́ teve origem no Reino de Ketu, precisamente na cidade de Ilobi, fundada por um membro da linhagem real Mefu, expandindo-se em seguida para toda a região ocidental do território iorubá. Segundo a tradição, surgiu nas últimas décadas do século XVIII, justamente no momento em que as cidades começaram a crescer, ganhando força no início do reinado do Alaketu Adebiya, por volta de 1816. A Sociedade Gẹ̀lẹ̀dẹ́ também não chegou a constituir uma ortodoxia, seus festivais adotaram muitas formas, diferentes tipos de orquestra, diversas articulações entre a festa diurna e noturna, variadas divisões de trabalho entre homens e mulheres, distintas divindades evocadas, dependendo do lugar e do momento.
A data da festa anual Gẹ̀lẹ̀dẹ́ ainda hoje varia de cidade para cidade, mas normalmente tinha lugar no final da estação seca ou no início da estação chuvosa, quando a comunidade rendia homenagens às forças cósmicas e aos poderes femininos de fecundação, propiciando-os para benefício próprio. Atualmente as festas Gẹ̀lẹ̀dẹ́ são organizadas quando da ocorrência de catástrofes que atingem toda a comunidade, guerras, grandes fomes, epidemias etc. Porém hoje a saída das Gẹ̀lẹ̀dẹ́ são mais frequentes, feitas sob solicitação de particulares para exorcizar problemas individuais ou familiares, esterilidade, doença, mau-olhado etc. Enquanto o festival, por exemplo, em Ketu manteve o seu caráter sagrado, em Uidá perdeu-o completamente, transformando-se em uma festa profana de puro divertimento. Hoje, em várias localidades, as Gẹ̀lẹ̀dẹ́ comemoram também a festa cristã do ano-novo ou são contratadas pelos partidos políticos por ocasião de comícios e eleições.
Na sociedade tradicional iorubana a função mais imediata da Sociedade Gẹ̀lẹ̀dẹ́ era organizar o culto e promover regularmente festivais para reverenciar as mais antigas divindades femininas do panteão iorubá, as Ìyámi, grandes mães, ancestrais de todo o povo, guardiãs da terra, das águas e dos saberes esotéricos. Gẹ̀lẹ̀dẹ́ vem de Gẹ̀ (aplacar, ou afagar) ẹ̀lẹ̀ (referências as partes íntimas das mulheres, simbolizando seus segredos e poderes de dar a vida) e dẹ́ (conotando realizar com cuidado ou gentileza). Visava também exaltar a importância da mulher para a continuidade da vida humana, reforçar seu status na sociedade, propiciar os poderes femininos para que eles não se tornassem destrutivos, canalizá-los para exorcizar os males que tumultuam a vida social. (22)
Em cada região a Sociedade Gẹ̀lẹ̀dẹ́ era prioritariamente ligada ao culto dos orixás especialmente propiciadores da fertilidade, ou a uma divindade fundadora, mas isso variava muito de cidade para cidade, cada compound ou bairro poderia ter a sua sociedade, cada sociedade, seu orixá particular. Em Ilê-Ketu, que ainda hoje conta com dez sociedades Gẹ̀lẹ̀dẹ́, cultuava-se a divindade da terra Odua, bem como os orixás dos caçadores Odé e Ogum.
Mas a Sociedade Gẹ̀lẹ̀dẹ́ era (e continua sendo) mista, tendo os homens um papel importante a desempenhar, particularmente nos aspectos mais publicamente visíveis. Na área cultural iorubana só os homens portam máscaras nos festivais públicos e, embora as máscaras gueledés representem personagens masculinos e femininos, elas são sempre usadas por iniciados do sexo masculino; porém as personagens femininas têm coreografias mais construídas, dançam mais suavemente, linearmente, exprimindo prazer, enquanto que os personagens masculinos dançam vigorosa e desordenadamente, exprimindo força.
Na vida da instituição, as tarefas são divididas entre homens e mulheres. Os homens além de consultarem o oráculo de Ifá antes dos festejos, são os percussionistas, os compositores, escultores, os cantores solistas que contam as histórias e explicam os motivos representados; são portanto os veiculadores da memória coletiva, uma vez que, nos cânticos, nos orikis, nas elegias, encontram-se as genealogias, as façanhas de personagens importantes na história do culto.
As mulheres, por sua vez, geralmente se encarregam da coleta de fundos, da preparação dos banquetes, em público cantam os refrões em coro, mas têm uma presença mais forte e determinante na vida interna da associação, detêm a responsabilidade maior nas iniciações individuais, nas cerimônias secretas e em toda a preparação protocolar do festival. Embora os homens também possam ter cargos de direção, como o Babalàs̩ẹ (Babalaxé), o “chefe das máscaras”, ou o “senhor dos tambores”, as mulheres são dirigentes máximas do culto, detendo com exclusividade o título de Ìyá Alàs̩ẹ ou Ìyálàs̩ẹ (Iyalaxé).
Os festivais Gẹ̀lẹ̀dẹ́ sempre foram famosos pela beleza de seus cantos, coreografias, máscaras e figurinos, eram eventos cuja produção mobiliza toda a cidade, investiam recursos consideráveis em banquetes, bebidas, altos figurinos e coreografias bem produzidas. Os iniciados passavam por um longo aprendizado coreográfico, na qual danças de diversos tipos, com diversas denominações, eram apresentadas por certos personagens em ocasiões especiais. A festa sempre atraía (e continua atraindo) grande público pela qualidade das performances, a parte noturna mais solene, a diurna mais carnavalesca e satírica. Segundo a expressão de Margaret e John Drewal, o festival Gẹ̀lẹ̀dẹ́ é ainda hoje um fenômeno complexo e multifacetado, “uma suntuosa produção multimidiática [...] criada por cantores, dançarinos, escultores, percussionistas e espectadores”. (23)
A primeira máscara (24) a sair no desfile era certamente a dedicada a Ès̩ù (Exú), o mensageiro que abre os caminhos, com sua roupa de ráfia e seu boné pontiagudo. Muitas máscaras representam o culto de Egúngún, outras tantas os diversos orixás; os próprios muçulmanos eram representados em muitas delas, pois eles tiveram um papel destacado na implantação e propagação da sociedade em várias regiões iorubanas. Mas os principais personagens eram, primeiro, a “grande máscara” Ẹ̀fẹ̀, um pássaro em madeira com um longo bico, símbolo dos poderes esotéricos; segundo, a Ìyánla, “a grande mãe” curvada pela idade, com joelhos e cotovelos dobrados, majestosamente vestida de branco, que, depois de um período inicial de introdução, assumia a identidade de Ọrọ-Ẹ̀fẹ̀, um misto de ancestrais masculinos e femininos, “expressão das excelências físicas e místicas dos dois sexos”. Gueledé reivindicava portanto também a equilibrada integração entre homens e mulheres. (25)
Depois desses temas fundamentais, os mais frequentes eram ligados ao mercado, às mulheres comerciantes, aos estrangeiros, muçulmanos, haussas, fulanis e outros, predominantemente ligados às atividades mercantis. Todas as categorias profissionais eram representadas, caçadores, ferreiros, tecelões, costureiros, carpinteiros, agricultores, percussionistas e por aí afora. Na satírica festa diurna alguns vizinhos truculentos podiam também ser representados com um olho crítico, como os daomeanos ou, mais tarde, os colonizadores europeus.
A sociedade também tinha um caráter acentuadamente político, na medida em que era a instituição mais democrática da sociedade iorubá. Embora concebida para prestigiar os poderes místicos das mulheres, todos podiam participar dos festivais Gẹ̀lẹ̀dẹ́, sem restrições não só de sexo, como de nascimento, religião ou qualquer outro tipo. Mesmos os estrangeiros eram acolhidos na sociedade como seus membros. As manifestações reuniam uma grande multiplicidade de temas e personagens sociais, a enorme variedade de máscaras e figurinos usados denuncia a diversidade de identidades e interesses. Segundo um membro da associação “Gueledé pertence à cidade”, suas divindades são “os orixás da comunidade”. (26)
Podemos portando dizer que Gẹ̀lẹ̀dẹ́ era a sensibilidade feminina a serviço do bem-estar social, mas outras ênfases insistem que o objetivo principal seria neutralizar a cólera das grandes mães, transformar seus poderes maléficos em forças benéficas, elas seriam assim homenageadas para não usarem seus poderes excepcionais em prejuízo da comunidade.
Em todas as cidades, os festivais Gẹ̀lẹ̀dẹ́ normalmente se davam no mercado central, onde o poder social das mulheres se manifestava com mais evidência, ornamentado com folhas de palmeira para a ocasião. No Centro, onde as duas ruas principais da cidade se cruzavam, ali era o espaço da democracia Gẹ̀lẹ̀dẹ́. Mas a festa pública era precedida de consultas ao oráculo de Ifá, que determinavam as condições gerais do evento, de ritos preparatórios realizados nos bosques sagrados, de sacrifícios propiciatórios, e seguida de outras celebrações de encerramento mais fechadas, com orações e presentes para as divindades.
Ora, enquanto associação de caráter político-religioso, a função da sociedade era estimular a coesão social, porém de um modo bem específico. A sociedade Gẹ̀lẹ̀dẹ́, como a Egúngún, também era guardiã da moralidade pública e da ordem social, mas sobretudo promotora da moderação e da concórdia, tratando todos os membros da comunidade como seus filhos. Seu objetivo era neutralizar as oposições que a vida em sociedade inevitavelmente instaura, “umedecendo” os ânimos de toda a população, apaziguando-os e predispondo-os para a convivência pública. Por isso Gẹ̀lẹ̀dẹ́ não era aterrorizante como a figura do Égún que, pela sua voz cavernosa e impressionante, pelo mistério que envolvia a identidade do dançarino, evocava um mundo não humano; enquanto isso no festival Gẹ̀lẹ̀dẹ́ o dançarino era identificável, sua voz não era alterada, salientando seu caráter humano, sua identidade social, transmitindo uma sensação de calma e serenidade, expressão deste apelo ao equilíbrio, ou uma fina ironia, a arma da moderação.
Enquanto o culto Egúngún era temido por ser o executante da violência institucional, os rituais Gẹ̀lẹ̀dẹ́ difundiam os ideais de indulgência e de paciência. Atitudes destrutivas e marginais não eram combatidas através da violência repressiva, mas pela galhofa e valorização da astúcia, levando ao ridículo os elementos anti-sociais provocadores de conflitos. A vertente cômica e satírica tinha espaço nas produções diurnas (que usavam as máscaras gueledés propriamente ditas), para as quais as associações de Ketu, sempre demonstraram um talento especial.
Alguns observadores comentam inclusive que a expansão Gẹ̀lẹ̀dẹ́ durante o reinado de Adebiyá contou com o apoio do Alaketu como força política neutralizadora da pressão imperial de Oyó. A expansão da Gẹ̀lẹ̀dẹ́ deu-se justamente quando começava a rebelião das províncias contra o poder central. Em vez de investir em equipamentos e forças militares, Adebiyá optou por investir em forças sociais, talvez percebendo que entrar na lógica do enfrentamento militar seria apenas uma maneira de aumentar os problemas.
Era, portanto esse ideal de moderação e igualitarismo que abriu espaço para uma participação ativa dos espectadores nos festivais Gẹ̀lẹ̀dẹ́. Embora houvesse naturalmente uma certa distância e distinção dos participantes mascarados, um dos objetivos da festa pública era a participação de toda a massa presente, criando uma coesão efetivamente comunitária. (27)
Exatamente por isso Gẹ̀lẹ̀dẹ́, bem como Ogboni e Egúngún, sofreram uma permanente pressão da religião conquistadora, o cristianismo, a partir do litoral, enquanto que as duas últimas sociedades foram perseguidas pela outra religião conquistadora, o islamismo fundamentalistas, vindo do norte, quando então essas sociedades secretas foram qualificadas de cultos diabólicos e destrutivos. Nessa guerra de civilizações a deturpação foi sistematicamente usada como arma de destruição da pujança da cultura da África negra tradicional. Nesse contexto é que o culto das Ìyámi foi identificado pelo estereótipo do culto marginal, culto das “bruxas”, figuras temíveis e anti-sociais, ativamente malignas, perigosas e destrutivas.
Notas
22. Henry John & Margaret Thompson Drewal, Gẹlẹdẹ, Art and Female Among The Yoruba. p. XV.
23. Drewal & Drewal. Gẹlẹdẹ, Art and Female Among The Yoruba, passim. Rivallin & Iroko, Yoruba masques et rituels africains, caps.2, “Les masques Yoruba” e 3, “Les cérémonies Gèlèdè”. Também consultamos Verger, “Esplendor e decadência do culto de Ìyàmi Òs̩òròngà, ‘minha mãe a feiticeira’ entre os Iorubás”, e Elbein dos Santos, Os nàgó e a morte, PP.115-117.
24. O termo “máscara” refere-se ao personagem como um todo, seu figurino, sua coreografia e sua fala, e não apenas à máscara enquanto tal.
25. Rivallain & Iroko, Yoruba masques ET rituels africains, p. 72.
26. Citado por Adepegba, apud Drewal & Drewal, p. 121.
27. Drewal & Drewal, pp. 52-54, 179-199. Elbein dos Santos, Os nàgó e a morte, PP. 115-117.
Fotos
Drewal & Drewal. Gẹlẹdẹ, Art and Female Among The Yoruba
Fonte
O CANDOMBLÉ DA BARROQUINHA – Processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto. Renato da Silveira.
Postado por Fábio Oliveira
04/02/2021

 

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