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O Discurso de Posse da Finada Iyalorisá Stella D Oxossi

Quando fui iniciada para o Òrìṣà Ọ̀ṣọ́ọ̀sì, pelas mãos de Mãe Senhora, uma das filhas diletas de Mãe Aninha, eu tinha apenas catorze anos de idade. Em 1939, uma pessoa com essa idade era uma criança, que apenas obedecia a ordens, sem questionar o que lhe mandavam fazer. Se minha cabeça física sentia tudo aquilo como uma grande brincadeira, minha cabeça espiritual entendia que eu estava me comprometendo com algo muito sério. Ao ser iniciada, consagrei-me a Ọ̀ṣọ́ọ̀sì. Tinha, então, compromisso com essa divindade, com minha Mãe-de-Santo, de saudosa memória, e com toda família Òpó Àfọ̀njá. Meu compromisso não foi selado com um anel. Ele foi selado com correntes fininhas, que simbolizam elos de uma grande corrente que une o Àiyé e o Ọ̀run, os homens e os deuses, o profano e o sagrado. Eu carregava elos de todas as cores: um arco-íris, uma ponte que me fazia transitar, ir e vir, da Terra ao Céu e do Céu à Terra. Em minha inocência, eu não entendia que aquelas correntes fininhas comunicavam aos deuses que eu era ainda um elo frágil, que precisava de energia, de Àṣẹ, para me tornar um elo forte, capaz de segurar muitos outros elos.
Foi assim que aos 51 anos de idade fui escolhida pelos búzios, consequentemente, pelos deuses, para ser Ìyálórìṣà — mãe de Òrìṣà, aquela que dá nascimento à essência sagrada de algumas pessoas. Minhas guias fininhas foram substituídas por grossas, grossíssimas guias. Eu já não tinha a inocência dos catorze anos e pude compreender que eu passava a ser um forte elo, sobre o qual se esperava que fosse capaz de segurar e apoiar todos aqueles que buscassem força para atingir degraus mais elevados na existência humana. Uma mãe, no colo de quem muitos buscam conforto, consolo e encantamentos para facilitar a caminhada por este planeta. Ninguém é empossada Ìyálórìṣà antes de sentar na cadeira especialmente preparada para este mister.
Hoje, aos oitenta e oito anos de idade, estou eu recebendo, outra vez, uma corrente, que segura uma linda medalha, e também mais uma cadeira. A medalha me faz lembrar o quão honrosa devo procurar fazer minha caminhada; a corrente, o sustentáculo desta medalha, demonstra o pacto agora firmado com os objetivos da Academia de Letras da Bahia; a cadeira deixa de ser apenas um lugar de assento para se transformar em um trono simbólico, onde ilustres cidadãos se imortalizaram. Sou agora mais um elo dessa corrente que me liga aos outros elos, meus confrades e confreiras, estejam eles presentes em vida ou em obra. Analisando a palavra cadeira, descubro que esta vem do latim "cathedra", significando cadeira de braços que confere uma imponência a quem nela se senta. Dessa palavra também deriva o termo catedral, local onde se encontra instalada uma autoridade religiosa. Quando se diz que alguém conhece um assunto "de cathedra", sobre este se deseja afirmar que ele tem um domínio sobre o tema em voga.
Não sou uma literata "de cathedra", não conheço com profundidade as nuanças da língua portuguesa. O que conheço da nobre língua vem dos estudos escolares e do hábito prazeroso de ler. Sou uma literata por necessidade. Tenho uma mente formada pela língua portuguesa e pela língua yorùbá. Sou bisneta do povo lusitano e do povo africano. Não sou branca, não sou negra. Sou marrom. Carrego em mim todas as cores. Sou brasileira. Sou baiana. A sabedoria ancestral do povo africano, que a mim foi transmitida pelos "meus mais velhos" de maneira oral, não pode ser perdida, precisa ser registrada. Não me canso de repetir: o que não se registra o tempo leva. É por isso e para isso que escrevo. Compromisso continua sendo a palavra de ordem. Ela foi sentenciada por Mãe Aninha e eu a acato com devoção. Em um dos artigos que escrevi, eu digo: Comprometer-se é obrigar-se a cumprir um pacto feito, tenha sido ele escrito ou não. O verbo obrigar, que tem origem no latim "obligare", significa unir. Portanto, quando dizemos um "muito obrigado", estamos sugerindo a alguém que nos fez um favor que a ele estaremos ligados, em virtude do favor que nos foi prestado. Obrigação é uma das palavras chaves do Candomblé: aquela que abre muitas portas. Fazer uma obrigação ou a obrigação, fica sendo, então, uma forma de estar cada vez mais unido aos Òrìṣà.
Se Mãe Aninha pediu a seu Òrìṣà, Ṣàngó, forças para construir seu "Terreiro de Candomblé", eu peço a meu Òrìṣà, Ọ̀ṣọ́ọ̀sì, que dê força, saúde e prosperidade a mim e a todos aqui presentes, principalmente àqueles cujos corações são puros.
— Mãe Stella de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì em seu discurso de posse na Cadeira nº 33 da Academia de Letras da Bahia, em 12 de setembro de 2013.
O discurso pode ser lido na íntegra em:
[Na foto, Mãe Stella com o escritor Jorge Amado, registrada no Terreiro do Gantois na década de 1970. A autoria é de Mario Luiz Thompson.]
# Publicado por Carlos Wolkartt em 25 de julho de 2020, às 12h35.

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