Racismo: religiões de matriz africana relatam ataques durante a pandemia.
Em momento de constrição motivada pelo isolamento social por causa da pandemia do novo coronavírus, cada religião manifesta a fé de maneira própria. No entanto, as religiões de matrizes africanas nem sempre podem usufruir do direito de livre profecia da fé, prevista na Constituição Federal de 1988. A reportagem do Estado de Minas flagrou, neste fim de semana, uma oferenda feita à Iemanjá, no portal dedicado ao orixá da fecundidade e da família, na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, destruída.
A prática de destruir oferendas devido à perseguição sofrida pelos praticantes do candomblé ou da umbanda, muitas vezes, passa despercebida. No entanto, constitui ato de ataque à dignidade de quem professa essas religiões, destaca Makota Kindoiale, liderança comunitária do Kilombo Manzo, patrimônio cultural de Minas Gerais.
TRÊS PERGUNTAS PARA...
Desde o início da pandemia, como vocês têm lidado com os atos de intolerância?
No início da pandemia, entendemos que, além da intolerância, são atos racistas. O que acontece hoje com as religiões de matrizes africanas, com os povos tradicionais, são práticas de racismo. Não pode citar como intolerância. Intolerância é quando você afasta daquilo que você não tolera, não suporta, mas, quando você agride, ataca e provoca destruição são atos racistas, práticas racistas e ultrapassa qualquer intolerância. No início da quarentena, a gente teve muita dificuldade de se posicionar enquanto pessoas, famílias que também vivem em situação precária, sem políticas públicas. Para a gente poder acessar essas políticas, infelizmente, tivemos que recorrer aos pentecostais. O fato de termos um modo diferente de rezar nos distanciou, nos exclui de acesso a cestas básicas. Precisava dizer de onde era, quem era. Quando você via remessa que poderia chegar até o seu terreiro, eles falavam que não poderiam fazer doação para núcleos religiosos. Mas víamos o material chegando a outros grupos religiosos. A partir daí, passamos a nos mobilizar com pessoas não racistas e tolerantes para que conseguíssemos viver o momento de isolamento e da pandemia.
Makota salienta que, com a chegada da pandemia, houve um aumento no número de atos violentos contra as religiões de matrizes africanas, inclusive, dificultando o acesso de pessoas praticantes dessas crenças, que passam por dificuldade financeira devido às restrições de emprego e de acesso a cestas básicas, por exemplo.
TRÊS PERGUNTAS PARA...
Makota Kindoiale, liderança comunitária do Kilombo Manzo
Desde o início da pandemia, como vocês têm lidado com os atos de intolerância?
No início da pandemia, entendemos que, além da intolerância, são atos racistas. O que acontece hoje com as religiões de matrizes africanas, com os povos tradicionais, são práticas de racismo. Não pode citar como intolerância. Intolerância é quando você afasta daquilo que você não tolera, não suporta, mas, quando você agride, ataca e provoca destruição são atos racistas, práticas racistas e ultrapassa qualquer intolerância. No início da quarentena, a gente teve muita dificuldade de se posicionar enquanto pessoas, famílias que também vivem em situação precária, sem políticas públicas. Para a gente poder acessar essas políticas, infelizmente, tivemos que recorrer aos pentecostais. O fato de termos um modo diferente de rezar nos distanciou, nos exclui de acesso a cestas básicas. Precisava dizer de onde era, quem era. Quando você via remessa que poderia chegar até o seu terreiro, eles falavam que não poderiam fazer doação para núcleos religiosos. Mas víamos o material chegando a outros grupos religiosos. A partir daí, passamos a nos mobilizar com pessoas não racistas e tolerantes para que conseguíssemos viver o momento de isolamento e da pandemia.
Qual o sentimento ao ver a imagem da oferenda destruída?
Imagem desta, justamente neste lugar, fico meio assustada. É um lugar que já tem intervenção pública. Existe o registro de patrimônio da imagem de Iemanjá e não existe Iemanjá em nenhuma outra religião, a não ser nas de matrizes africanas. Aí eu pergunto: qual a política de patrimônio que nos garante usufruir desse espaço da forma que foi colocado ali ou registrado? Quando a gente registra a praça, a imagem de Iemanjá na Lagoa da Pampulha tem que ter a garantia da manifestação e das ações que são direitos nossos de usar desse espaço como patrimônio, e não apenas espaço para ser fotografado ou para a cidade dizer que cumpre com a legislação, que o Estado é laico. Por que eu posso entrar numa igreja acender uma vela de imagens sagradas na igreja cristã? Por que posso ir para igreja pentecostal levar minhas flores? E por que eu não posso ir até a imagem de Iemanjá e colocar um agrado no pé dela, se essa é a minha forma de rezar? Se ela está ali, no espaço público, registrada como patrimônio, qual é o direito que o outro tem de desconstruir isso e agredir a minha fé dessa forma? Quais são as medidas públicas para o patrimônio nesta cidade? O que se pensa, para além do espaço, a manutenção da prática como patrimônio. Isso tudo tem que ser cobrado do poder público. O município tem que nos dar uma resposta, uma garantia de manutenção, direito de usufruir e dar continuidade a este patrimônio.
Como esse ato atinge a dignidade de quem professa a fé nas religiões de matrizes africanas?
Além de ser agredido desta forma, a gente se sente inseguro dentro da cidade. Inseguros de não poder carregar nosso alguidar, não poder carregar as nossas indumentárias em nosso corpo. O tempo todo corremos o risco de sermos agredidos, da mesma forma que agridem nossas práticas, espaços que são preservados e registrados como espaços de patrimônio da cidade. Não é só o Portal de Iemanjá, na Praça dos Pretos Velhos temos sofrido essas agressões morais. Para mim, é uma agressão moral. Não foi diretamente a mim, mas me constrange ver essas imagens circulando ou vendo essas práticas acontecendo.
FONTE JORNAL ESTADO DE MINAS
22/06/2020 15:11 -
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